O Brasil possui uma das cafeiculturas mais emblemáticas do mundo e o consumo direcionado pode ser uma forma de engajamento ambiental
Texto: Enrique Alves* – Pesquisador da Embrapa Rondônia
Adaptação: Marluce Corrêa Ribeiro
Foto: Renata Silva – Embrapa Rondônia
Vivemos tempos em que as informações nos chegam nas mais diferentes plataformas e mídias, e isso é muito bom. Mas, essa popularização do conhecimento trouxe algo tão letal quanto à desinformação: a má informação. Quando estas notícias tratam de temas importantes como a preservação das florestas é preciso ter ainda mais cuidado.
É disso que vamos falar, da relação complexa entre a agricultura e a floresta. Não se pode ser inocente e dizer que a produção de alimentos no mundo não se deu com base no desmatamento. Isso sempre foi uma realidade e, em fronteiras agrícolas mundo afora, ainda pode ser observado. Mas, que fique bem claro, existe uma grande diferença entre produção sustentável de alimentos e degradação ambiental. O Brasil é muito rico em bons e maus exemplos e é necessário não generalizar para não criar preconceitos e julgamentos injustos.
A Embrapa tem preconizado que a agricultura precisa ter um viés sustentável e busca, constantemente, em parceria com outras instituições, novas tecnologias com essa finalidade. Nesse contexto, há um novo modelo de produção agrícola integrada, que vem se tornando, a cada dia, mais popular no país, englobando diversas combinações entre os componentes agrícola, pecuário e florestal.
Como resultado disso, temos diferentes sistemas integrados, como lavoura-pecuária-floresta (ILPF), lavoura-pecuária (ILP), silvipastoril (SSP) ou agroflorestais (SAF). Atualmente, são 15 milhões de hectares no país que utilizam os diferentes formatos da estratégia ILPF e a estimativa é de que, para os próximos 10 anos, sejam mais de 42 milhões.
Se, no passado, a agricultura andava de mãos dadas com a degradação ambiental e o desmatamento, essa realidade já não é verdadeira para muitas das principais culturas alimentares do mundo e, dentre elas, destaca-se o café.
Podemos dizer que esse grão que construiu cidades e é a bebida mais consumida no mundo, depois da água, pode representar uma ferramenta vital para a inclusão e desenvolvimento social, qualidade de vida e preservação ambiental no Brasil, principalmente, na região amazônica. Isso não é sonho, é realidade.
Adoção de tecnologias é o caminho da sustentabilidade
Na safra atual de 2020, a expectativa de produção do café no Brasil é de 60 milhões de sacas de 60 Kg, colhidas em 1,8 milhão de hectares. Mas, para demonstrar a evolução da cafeicultura nas duas últimas décadas serão comparadas duas safras de baixa produção (bienalidade negativa), 2001 e 2019.
Em 2001, o Brasil possuía 2,6 milhões de hectares plantados com café – 2,2 milhões em produção e 400 mil em formação – que produziram 31 milhões de sacas. Para a safra de 2019, a produção foi de 49 milhões de sacas, cultivadas em 2,1 milhões de hectares – 1,8 milhão em produção e 319 mil em formação.
Ao se observar o gráfico da série histórica da produção de café no Brasil – dados da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab, nota-se que entre os anos de 2001 e 2019 houve um decréscimo de 19% na área cultivada, cerca de 500 mil hectares a menos. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, a produção do grão aumentou 58% no período.
Esse maior rendimento das lavouras foi motivado, principalmente, pela incorporação de novas tecnologias no campo, que fizeram a produtividade média das áreas subir de 14 para 27 sacas por hectare, um aumento de 93%.
Além disso, apesar da renovação constante das lavouras, numa taxa média superior a 6% ao ano, isso não se refletiu em um aumento de área cultivada ao longo das duas últimas décadas. Demonstrando que, as áreas em formação são, em sua maioria, a substituição de plantios obsoletos por outros mais tecnológicos.
Dentre as novas tecnologias incorporadas na cafeicultura, podemos citar: melhoramento e seleção genética, manejo de irrigação, arranjos espaciais eficientes, conservação do solo e manejo integrado de pragas e doenças. Tudo isso tornou as lavouras brasileiras mais sustentáveis e agronomicamente eficientes.
Os números apresentados no gráfico abaixo demonstram que a evolução da cafeicultura no Brasil, passa longe do desmatamento. O país se consolida como a “nação do café”, sendo responsável por cerca de um terço da produção mundial.
Cafeicultura na Amazônia
O Brasil é um dos principais “players” da cadeia produtiva do café no mundo. É o maior produtor, exportador e segundo maior mercado consumidor. Possui uma cafeicultura plural e diversificada. Uma verdadeira paleta sensorial, reproduzida em aromas e sabores originados em lavouras das espécies arábica e canéfora (conilon e robusta), cultivadas de norte a sul do país. Um grande exemplo disso está numa das regiões mais emblemáticas do mundo: a Amazônia.
Para exemplificar o que acontece na produção de café nesta região vamos falar de Rondônia que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é responsável por 97% de todo o café produzido na Amazônia. O estado é o quinto maior produtor de café do país e o segundo da espécie canéfora. Se a cafeicultura no Brasil como um todo evoluiu, o salto na cadeia produtiva de Rondônia foi quântico.
Café na Amazônia não é uma coisa recente. Segundo relatos históricos, a primeira lavoura de café do Brasil foi cultivada em terras do norte, no Estado do Pará, em 1727. Depois, foi levada para a região sudeste, mais evoluída à época, e se desenvolveu nos moldes como conhecemos hoje. O café só voltou a ter importância econômica para a região amazônica na década de 1970, com os pioneiros que foram desbravar a região. Eram migrantes vindos, principalmente, dos estados do Espírito Santo, Paraná e Minas Gerais.
Foi um período de grande expansão territorial das lavouras na região norte, mas, o café produzido era considerado de baixa qualidade e as plantas pouco produtivas. Resultado de uma atividade agrícola de características quase extrativistas e de pouca eficiência de uso da terra.
Assim como ocorreu em todo o país, a cafeicultura na Amazônia cresceu. Em 2011, o Estado de Rondônia já contava com 318 mil hectares de lavouras – 245 mil em produção e 73 mil em formação – que produziam 1,9 milhão de sacas e ainda mantinham um padrão de baixa tecnologia, com produtividade média de oito sacas por hectare.
Atualmente, a expectativa de produção para a safra de 2020 é superior a 2,3 milhões de sacas, produzidas em uma área plantada 78% inferior à de 2001, e com 71 mil hectares, sendo 65 mil em produção e seis mil em formação. Em quase duas décadas, a produtividade evoluiu para 36 sacas por hectare, graças aos produtores que, a cada ano que passa se dedicam mais ao uso de tecnologias de base sustentável.
Se o Brasil fez o dever de casa nos últimos anos, os cafeicultores da Amazônia estão fazendo tarefas extras. Pois, se existe uma região no globo terrestre que pode aumentar vertiginosamente a sua produção de café, sem que seja necessário um único hectare de desmatamento, ela está no Estado de Rondônia.
Em cálculos simples, se retornarmos ao “status” de área cultivada de 2001 e a produtividade atual, o estado produziria mais de 11 milhões de sacas de café. Sim, a resposta para uma demanda crescente de produção mundial de café pode encontrar seu lugar na Amazônia. Veja essa evolução surpreendente dos últimos anos no gráfico abaixo.
“Green forest trade” para os cafés amazônicos
Dito isto, fica claro que o recorrente argumento do vínculo entre a produção da cafeicultura e o desmatamento não procede. Não apenas a cafeicultura reduziu a área utilizada de lavouras, como se tornou mais eficiente e produtiva. E, ouso dizer que quem ama as florestas deveria consumir mais cafés brasileiros e, principalmente os amazônicos. O mercado mundial de café já valoriza muito o comércio justo – fair trade e poderia passar a pagar um “green forest trade” para os cafés amazônicos com viés ecológico.
A cafeicultura pode ser genuinamente sustentável e uma aliada à preservação das florestas. Por apresentar alto rendimento econômico por hectare, quando comparado a outras mais extensivas, é capaz de sustentar a qualidade de vida dos cafeicultores e suas famílias em pequenos módulos rurais. Isso representa menor pressão sobre a floresta e menor suscetibilidade desses agricultores a atividades ambientais predatórias.
Apenas em Rondônia, os cafeicultores formam um verdadeiro exército de mais de 17 mil famílias que têm o café como principal fonte do seu sustento. Estes produtores são quase um quinto de todos os estabelecimentos rurais do estado. Manter a viabilidade econômica dessas famílias no campo deveria ser uma meta para toda a cadeia produtiva do café e de quem se preocupa com as florestas no Brasil e, principalmente, na Amazônia.
Mais qualidade, inclusão e reconhecimento
Uma demonstração da evolução da cafeicultura na região amazônica é que está em processo o reconhecimento do que será a primeira Indicação Geográfica de cafés canéfora sustentáveis no mundo. Trata-se da Região Matas de Rondônia que produz os Robustas Amazônicos, sendo responsável por, aproximadamente, 80% de todo o café produzido na Amazônia.
Além disso, preservar a floresta nunca foi tão agradável e prazeroso. Os Robustas Amazônicos, cuja excentricidade e características sensoriais únicas têm conquistado a atenção dos consumidores de cafés finos no Brasil e no mundo, são tema do maior concurso da espécie no Brasil, o Concafé. Além de premiar, anualmente, os melhores cafés produzidos no estado, também condecora as lavouras mais sustentáveis. Não se trata apenas de produzir em quantidade e qualidade. A evolução da cadeia também precisa garantir a preservação do meio ambiente para as próximas gerações.
Na Amazônia, o café defende também o que muitas vezes está esquecido nos discursos de preservação e sustentabilidade: o fator humano. Os habitantes dessa região dependem dos recursos do meio para sobreviver e precisam buscar formas de uma convivência harmônica com o meio ambiente.
Rondônia tem dado bom exemplo. Iniciativas de inserção social estão acontecendo de forma orgânica e natural junto à cadeia produtiva. A cafeicultura amazônica nunca foi tão plural e inclusiva. Mulheres, jovens e indígenas são parte fundamental e movimentam as lavouras. A Aliança Internacional do Café – IWCA no Brasil tem em Rondônia um de seus capítulos mais bonitos.
O protagonismo dos povos originais, que habitavam as florestas brasileiras antes de qualquer desbravador, também é uma conquista da cafeicultura Amazônica. Os indígenas, que cultivam há mais de 30 anos o café em suas terras, agora, começam a enxergar na produção de Robustas finos uma forma sustentável de obter recursos financeiros em meio à floresta.
Por mais revolucionário que isso possa parecer, não deveria ser algo tão extraordinário assim. Não têm os cafés a sua origem nas clareiras e nas bordas das florestas africanas? Seria apenas uma espécie de resgate. O café na Amazônia é, além de tudo, uma fusão de aromas e sabores. Um grande “blend” (mistura) de tradição, tecnologia e origem.
Preservar a floresta amazônica significa manter a nossa capacidade de perder o fôlego diante das belezas e riquezas já descobertas e escondidas dessa região tão importante e emblemática.
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*Enrique Anastácio Alves é doutor na área de Engenharia Agrícola e, desde 2010, atua como pesquisador A na Embrapa, nas áreas de Colheita, pós-colheita do café e qualidade de bebida.