As mulheres ainda precisam provar sua competência, dia após dia, para ganhar credibilidade no setor. Mas novas exigências do mercado como facilidade de comunicação, flexibilidade e conexão com as pessoas têm aberto mais espaço para as mulheres
Texto: Marcelo Moreira, Piquini Comunicação Estratégica
Adaptação: Marluce Corrêa
Nos últimos anos, tem ocorrido um movimento interessante no agronegócio, com uma entrada significativa das mulheres neste setor comumente dominado pelos homens. Alguns números comprovam isso. Uma pesquisa realizada no ano passado pela Ideagri em sua cartela de clientes constatou que entre as 90 fazendas de leite que se classificaram com a melhor pontuação na terceira edição do Índice Ideagri do Leite Brasileiro, publicado em setembro 2019, 30% são geridas por mulheres ou contam com mulheres em papéis relevantes na administração ou assistência técnica.
“A presença feminina no trabalho das fazendas, em nossa carteira de clientes, como usuárias do sistema, bem como em cursos, leilões, feiras e eventos do setor é cada vez mais significativa”, diz Heloise Duarte (foto), CEO da Ideagri, citando, por exemplo, que a proporção de graduadas nos cursos relacionados ao agronegócio tem se igualado e até mesmo superado a de homens.
As mulheres precisam provar sua competência
Neta de um pequeno produtor, que criou 14 filhos tirando leite, a editora da revista Leite Integral, Flávia Fontes, conta que sua história com o leite começou quando ainda era pequena. “Sempre admirei o trabalho dele, sua força de vontade e pioneirismo. Quando entrei na Escola de Veterinária da UFMG, sabia muito bem o que queria. Todos os meus estágios foram com leite, assim como o mestrado e doutorado. Meu objetivo era seguir a carreira acadêmica, mas não havia concursos abertos”, explica.
Diante desta impossibilidade, Flávia identificou um nicho de mercado e decidiu criar uma revista para atender produtores progressistas e técnicos do setor. A primeira edição saiu em fevereiro de 2006. “Completamos 14 anos. Depois da Leite Integral, veio o Simpósio Internacional, que esse ano completa 10 anos, o #bebamaisleite, movimento de estímulo ao consumo de lácteos e a Integral Conteúdo, que é uma agência de comunicação para a pecuária”, revela a empresária que recentemente ainda lançou um programa de certificações de qualidade do leite, que já conta com selos de bem-estar animal, leite proveniente de Vacas A2A2 e Biosseguridade.
Novas exigências do mercado têm aberto espaço para as mulheres
Nascida e criada em Belo Horizonte, Bruna Leonel, coordenadora da Cooperativa Central dos Produtores Rurais de Minas Gerais, instituição que detêm 50% da Itambé, sempre passou os finais de semana no interior e acompanhou de perto a atividade leiteira da família. Essa familiaridade e os valores presentes no meio rural foram determinantes para a escolha profissional. Cursou Zootecnia, em Viçosa (MG), onde teve um contato mais intenso com a pecuária leiteira através do PDPL, que é um programa de estágio que presta assistência técnica para os produtores da região, e através da central de processamento de dados do projeto Educampo, uma parceria com o Sebrae.
“Me chamou muito a atenção o tanto que a gente ainda precisa caminhar em termos de gestão, de organização dentro das fazendas. É uma atividade viável e traz muito resultado. A oportunidade de ganho é muito grande e foi o que me direcionou profissionalmente”, explica. Após a formatura, há cinco anos, foi trabalhar na CCPR Itambé e, desde então, sempre trabalhou nesta área de desenvolvimento do produtor, levando soluções para o produtor e auxiliando nos processos de produção, com foco na melhoria de qualidade.
Apesar de atuar em um meio muito tradicional, em que as mudanças, muitas vezes, são muito lentas, Bruna acredita que o mais importante são as características de cada um e a necessidade de estar sempre em um processo contínuo de melhora e aprendizado. “Precisamos aprender a lidar com isso com graça e leveza porque o mundo pede isso, a pressão é muito grande, as mudanças são muito rápidas. Isso requer que a gente se reinvente o tempo inteiro. Eu nunca deixei que isso me limitasse ou isso me impulsionasse. É o tipo de coisa que tento passar por cima. Se a gente conseguir olhar as nossas fragilidades e trabalhar o que for preciso, todo mundo tem oportunidade de ir muito longe.”
Ela ainda observa um avanço na participação da mulher no agronegócio, uma participação cada vez maior e credita isso à quebra de paradigmas no meio rural e ao próprio mercado, que exige hoje habilidades que não exigia antes. “Isso tem feito com que todo mundo tenha que sair do lugar. São habilidades que, em tese, são mais comuns às mulheres, como facilidade de comunicação, flexibilidade, conexão com as pessoas. As características que o mercado pede têm aberto mais espaço para as mulheres”, afirma.
Trabalhar no agronegócio é tudo de bom!
Professora da Escola de Veterinária da UFMG, Sandra Gesteira sempre gostou de vacas de leite, desde criança, quando passava férias no interior e, durante a viagem, sempre via os animais pastando, o que foi determinante para a escolha profissional. “Eu sempre achei esse animal muito bonito, apesar de grande, tinha muita curiosidade e vontade de fazer Veterinária. Quando terminei a graduação, eu queria trabalhar com vaca de leite e, naquela época, o caminho era atuar com reprodução, então fiz mestrado nesta área. Acabei trabalhando com transferência de embrião, mais com gado de corte, mas também um pouco com gado de leite.”
Em seguida, Sandra passou a trabalhar com assistência veterinária até voltar para universidade para cursar doutorado. “Nessa época apareceu uma vaga de professor na área de bovinocultura de leite, que era a área que eu sempre gostei, fiz concurso, passei, e estou na UFMG até hoje.”
Sandra conta que após tantos anos na atividade profissional, os desafios são pequenos por ser mulher, embora, muitas vezes, ainda perceba um olhar diferente em alguns criadores, como se não acreditassem na capacidade em um primeiro momento. “Mas como eu já estou há muito tempo nesse negócio, fica mais fácil para mim. Quando eu me formei era bem mais difícil. Eu me formei em 1982, então você imagina como era essa questão de preconceito. Nossa sociedade ainda olha diferente para essas profissões ditas masculinas. Mesmo as empresas, que muitas vezes deixam de contratar uma profissional recém-formada porque ela logo pode estar gestante e isso pode trazer algum problema para elas.”
A maneira encontrada por ela para driblar esses obstáculos foi investir na formação. “Após terminar o mestrado, eu tinha uma qualificação acima dos veterinários que estavam no campo e isso fazia com que os produtores perdessem esse preconceito”, revela a professora.
Realizada na carreira que escolheu, Sandra conta da satisfação em atuar no agronegócio. “Hoje eu estou na universidade, mas fui profissional de campo por 11 anos. Durante este período eu achava extremamente prazeroso acordar cedo, dirigir até a fazenda, ver o sol nascer, as mudanças na vegetação ao longo do ano. Quando chegava na fazenda, melhor ainda: poder organizar as coisas, os lotes de produção, a criação de bezerros e ver o efeito desse trabalho muito rapidamente. Assim que a gente começa a organizar uma fazenda, você imediatamente vê uma melhoria, seja na produção de leite, na qualidade do leite, no ganho de peso de bezerro, no ganho de peso das vacas, então é muito gratificante”, completa.
Laços estreitos com a terra
Proprietária da fazenda São João True Type, localizada em Inhaúma (MG), Huguette Guarani sempre teve laços muito estreitos com o campo, seu pai, de origem francesa, tinha uma propriedade familiar no Marrocos e, tempos depois, ela viu nessa ligação à cultura da terra uma oportunidade de negócio. “Não estudei para isso, foi um despertar.
Minha trajetória se iniciou quando eu me casei. Tínhamos uma fazenda voltada ao lazer em Betim e, lá mesmo, nós começamos. Eu cheguei a empacotar 800 litros de leite, desnatava, fazia creme de leite, uma coisa ainda muito pequena, muito tímida, mas que me fez sentir um prazer enorme por estar fazendo aquilo”, revela.
A partir desta primeira experiência, surgiu a ideia de tornar o negócio mais comercial e desenvolver um projeto para leite. Após a consultoria de um agrônomo, que reprovou a fazenda pela topografia, iniciou-se uma busca por uma nova propriedade. “Saímos procurando no mercado e encontramos a São João, que tinha todas as condições que nos permitisse realizar esse desejo de ser uma fazenda produtiva e comercial. A gente não queria uma fazenda familiar, desde o início a ideia era ser profissional dentro do leite.”
Huguette conta que apesar não ter enfrentado nenhum problema para tocar a fazenda pelo fato de ser mulher, passou pelas mesmas dificuldades que enfrenta qualquer pessoa quando começa um negócio, como mão de obra, dinheiro, dentre outras. Mas elege como o maior desafio ter que tocar o projeto no início com os filhos ainda pequenos. “Muitas vezes tive que levá-los a reuniões, interromper reunião para amamentar. Mas esse não é um desafio inerente à atividade rural, ele existiria em qualquer setor. Eu não sei se dei sorte, se é questão do meu modelo de gestão, mas eu não vivo essa dificuldade tão aparente que muitas pessoas enfatizam.”
Ao contrário, ela conta que o fato de estar envolvida em uma atividade ligada à natureza é uma grande realização. “O que é gratificante para mim é fazer o que eu gosto. Gosto de lidar com pessoas, estar envolvida com a natureza, ter meus pés fincados em um lugar que me conecta à vida bucólica, com valores mais simples das pessoas, lidar com animais e sair um pouco do asfalto quente, das tecnologias, podendo observar a riqueza que existe neste universo”, finaliza.
Texto: Marcelo Moreira, Piquini Comunicação Estratégica
Foto: Pixabay